Mares em transformação - Jornal da USP

Originalmente publicado em: Jornal da USP. 06/04/2015. Sylvia Miguel.

Realizado em Santos, simpósio internacional sobre os efeitos das mudanças climáticas nos oceanos – que consolidou documento a ser levado à reunião da ONU sobre o clima, em Paris, no mês de dezembro – enfatiza a necessidade de mais estudos sobre acidificação e impactos sobre a pesca.

pices001

Mudanças climáticas podem afetar ambientes costeiros. Foto: Carta Capital.

“Aquecimento global não quer dizer simplesmente mais calor. O clima do planeta é algo mais abrangente e o leigo não entende a conexão entre oceanos e mudança climática. A escala de tempo de estabilização dos oceanos e sua resposta aos impactos do CO2 ainda não são compreendidas. Precisamos pensar na forma de comunicar esse problema para gestores e toda a sociedade.”A preocupação do cientista Carlos Nobre, ex-secretário nacional de Políticas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCT&I), foi expressa durante a abertura do terceiro simpósio internacional The Effects of Climate Change on the World’s Oceans, que reuniu na cidade de Santos (SP) a comunidade oceanográfica e alguns dos maiores especialistas em estudos do clima.

Realizado de 21 a 27 de março, o evento organizado por três das maiores autoridades mundiais sobre a questão marítima – International Council for the Exploration of the Sea (Ices), North Pacific Marine Science Organization (Pices) e Intergovernmental Oceanographic Commission (IOC), da Unesco – teve sua primeira versão na Espanha, em 2008, seguida por uma edição na Coreia, em 2012.

Os estudos sobre as mudanças climáticas começaram a ser sistematizados no Brasil há muito pouco tempo, com a criação da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima), lembrou Nobre. “A comunidade científica brasileira reunida pela Rede Clima está empreendendo alguns esforços de pesquisa sobre as respostas dos oceanos às mudanças do clima”, disse Nobre, que coordenou a rede quando foi criada, em 2008.

Segundo o cientista, o Brasil também está tentando colocar mais ênfase nas políticas para oceanos. Cita como iniciativas federais a estruturação do Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas e Hidroviário (Inpoh) e a aquisição do navio de pesquisa hidro-oceanográfico Vital de Oliveira, projetos que liderou enquanto esteve na pasta.

Vital de Oliveira 2

Navio Hidrooceanográfico Vital de Oliveira.

Fruto de um acordo de cooperação entre Marinha, Petrobras e Vale, o navio Vital de Oliveira foi construído no estaleiro Hangtong, em Xinhui, na China. Teve a cerimônia de batismo no dia 24 de março, no cais de Keppel Marine, Cingapura, quando foi incorporado à Marinha do Brasil. A embarcação pode receber até 40 cientistas e deverá servir a diversas instituições.

O Inpoh, por sua vez, está sendo criado como organização social associada ao MCT&I e aos Ministérios dos Portos, da Pesca, da Agricultura, da Defesa e da Educação, além da Marinha. Tem o objetivo de coordenar a pesquisa oceanográfica brasileira e também dar apoio logístico e suporte a embarcações nos oceanos, disse Nobre ao Jornal da USP.

Kyoto – O tão falado Protocolo de Kyoto, selado em 1997 com a meta de reduzir as emissões que provocam o aquecimento global, adotou estratégias com resultados decepcionantes. Em vez de diminuir, as emissões aumentaram 50% em relação aos níveis de 1990. Os princípios de Kyoto foram estabelecidos na Convenção do Clima de 1992, criada durante a Rio 92 (Cúpula da Terra).

O entusiasmo da convenção de 1992 afinal se dissipou por completo na Rio+20, embora o documento final The Future We Want tenha incorporado muitos temas que ficaram de fora em 1992, incluindo a questão dos oceanos e sua relação com as mudanças climáticas globais.

pices003

Há muitas expectativas sobre o novo Protocolo do Clima e com certeza o tema oceanos deve estar presente no documento multilateral. Foto: Camila Freire

O planeta se prepara agora para novas discussões sobre mudanças climáticas. A próxima conferência internacional será realizada em Paris, em dezembro. Essa Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), ou COP 21, terá a missão de chegar a um acordo global para entrar em vigor em 2020.

A sociedade oceanográfica mundial está empenhada, desta vez, em incorporar ao documento multilateral a real importância dos oceanos. Todas as recomendações a que os especialistas chegarem, no simpósio de Santos, serão levadas às reuniões preparatórias e depois à conferência de dezembro em Paris, disse um dos organizadores do evento e representante da IOC-Unesco, Luis Valdés.

“Esse é um evento no momento certo para levar todas as recomendações para um quadro de discussão global. Por isso é um marco. Há muitas expectativas sobre o novo Protocolo do Clima e com certeza o tema oceanos deve estar presente no documento multilateral”, disse Valdés ao Jornal da USP. Alguns dos capítulos cruciais nos recentes relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) e os avanços no documento final da Rio+20 também foram conquistas da comissão intergovernamental da Unesco, disse.

Até o fechamento desta edição, o documento não estava concluído, mas alguns temas bastante discutidos no evento e que certamente entrariam no texto, segundo o professor Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, incluem: ampliar estudos sobre acidificação dos oceanos; incluir o tema mudanças climáticas na questão da governança do mar; ampliar os estudos sobre modelagens e previsões; ampliar estudos para melhor compreensão dos impactos na pesca e aquicultura.

Acidez – O branqueamento dos corais causado pela acidificação dos oceanos, as mudanças meteorológicas, o declínio da pesca, a tendência de aumento no nível do mar e outros fatores que podem afetar os ambientes costeiros são temas de interesse da ciência. Mas deveriam chamar a atenção das pessoas, pois todas estão no olho do furacão.

“Mais do que nunca, a comunidade oceanográfica mundial está interessada em incorporar a dimensão humana nas questões envolvendo oceanos e mudanças climáticas. Devemos levar adiante o conhecimento das vulnerabilidades destacadas no relatório do IPCC e propor soluções”, disse Jacquelynne King, uma das organizadoras do simpósio, representante da Pices e da Pacific Biological Station, Fisheries and Oceans Canada.

“Há muito tempo se fala sobre acidez nos oceanos no exterior. Isso só começou no Brasil há pouco tempo. De repente esse se tornou um assunto muito importante. Por isso é o momento de discutir resultados e metas”, disse Nobre durante a palestra.

pices005

Prof. Dr. Michel M. Mahiques. Foto: Marcos Santos

“Precisávamos colocar o Hemisfério Sul no mapa da pesquisa oceanográfica e a USP no mapa da pesquisa de mudanças climáticas. Entendemos o Instituto Oceanográfico da USP como líder da pesquisa oceanográfica no Brasil e precisamos estudar tópicos fortemente ligados às mudanças climáticas”, disse o professor Michel Michaelovitch de Mahiques, vice-diretor do IO.

Um dos temas “quentes” do momento, acidificação das águas marinhas, por exemplo, apenas acabou de constituir uma rede de pesquisa no Brasil, disse Mahiques, referindo-se ao Grupo de Pesquisa Brasileiro em Acidificação dos Oceanos (Broa), criado em 2012. “Esse tipo de pesquisa exige muitos recursos e tecnologia e infelizmente ainda estamos engatinhando nessa área”, afirma Mahiques.

O que muitos países já pesquisam de forma sistematizada, o Brasil ainda sonha em começar, conta Mahiques. “Temos um grupo forte de modelagem, mas há poucas séries históricas de dados oceanográficos. Muitos países já investiram em observatórios submarinos e esse é um desejo nosso. Da mesma forma, é necessário aumentar o número de boias, fundeio, flotilha e recursos humanos. O desafio não é tecnológico. Faltam recursos para instalar e manter essas estruturas”, disse ao Jornal da USP.

Alguns dos experimentos mais aceitáveis que correspondem minimamente à realidade do oceano é o que os especialistas chamam de mesocosmos, um tipo de tanque com grande volume de água, alguns in situ, outros em laboratórios, onde são monitoradas diversas características da água marinha, conta a professora aposentada do IO Rosane Gonçalves Ito, uma das precursoras dos estudos sobre acidificação no Brasil. “Infelizmente, as dificuldades não ocorrem apenas aqui. A Europa também passa por restrições”, disse.

“O Brasil possui apenas três desses mesocosmos. Até hoje estamos na fase de levantamento de informações. Os estudos com dados sobre acidificação no Brasil são ínfimos. Há talvez uns quatro artigos apenas publicados nos últimos dois anos”, disse o professor Ruy Kikuchi, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Vulnerabilidades – “Esse evento traz atualizações dos estudos sobre mudanças climáticas e como as sociedades são impactadas. Não há ainda muita clareza quanto aos efeitos do clima sobre os oceanos ou pelo menos não podemos estabelecer relações diretas. Mas é certo que muitas dessas alterações vêm impactando o ser humano”, afirma o professor Alexander Turra, do IO. Coordenador da Rede de Monitoramento de Habitats Bentônicos Costeiros (Rebentos), Turra é um dos responsáveis por trazer ao Brasil o simpósio internacional sobre o mar e mudanças climáticas.

O professor cita oscilações nos regimes de pesca e conflitos relacionados às populações pesqueiras que podem estar associados às mudanças climáticas globais. “Isso está bem documentado no Atlântico Norte e Pacífico Norte. Mas no Atlântico Sul quase não temos dados. Isso é grave, porque não nos permite manter um acompanhamento minimamente decente das estatísticas pesqueiras. De nossos estoques, conhecemos menos ainda. Há três anos não temos dados de desembarques pesqueiros divulgados pelo governo federal”, cita Turra.

Além dos altos custos das pesquisas oceanográficas, outro agravante é que a área demanda estudos de longa duração. “O financiamento de pesquisa nem sempre tem um horizonte amplo no Brasil e geralmente fica sujeito às oscilações políticas”, aponta.

As pesquisas oceanográficas deverão ganhar mais evidência no Brasil, agora que a Plataforma Continental legal está em vias de aumentar consideravelmente, com a aprovação do pleito conhecido como Amazônia Azul, acredita Turra.

pices004

Carlos Nobre, ex-secretário nacional de Políticas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCT&I). Foto: Marcos Santos.

Pelo pleito depositado na Organização das Nações Unidas (ONU) em 2004, o Brasil espera obter o reconhecimento de direito territorial sobre uma área costeira adicional de aproximadamente 950 mil km2. Assim, os limites das águas jurisdicionais brasileiras passariam a 4,4 milhões de km2, o que corresponde a praticamente a metade da superfície do território nacional em terra firme. Ou seja, todo o território brasileiro seria constituído por um um terço de água marinha e dois terços de terra firme. Os limites garantiriam não só direitos econômicos, mas também os deveres e responsabilidades de natureza política, ambiental e de segurança pública sobre esse território.

Dada a extensão da costa brasileira, Turra considera um contrassenso o descaso com a política e governança marítima. “A desarticulação é evidente. O Ministério do Ambiente concluiu seu Planejamento Estratégico, válido de 2014 a 2022, sem nenhuma menção sequer aos oceanos, sendo que a política nacional de gerenciamento costeiro deve ser implementada por essa pasta. A comunidade científica fez um manifesto com mais de mil assinaturas e o Ministério não se manifestou até o momento”, afirma Turra.

O professor teme que medidas de contingenciamento de recursos pressionem demais a área ambiental e as questões marítimas nos próximos anos. O Projeto Orla, do Ministério do Meio Ambiente, criado para coordenar ações das três esferas de governo no que se refere a diversas questões da costa brasileira, “não vem sendo colocado em prática”, afirma. “Um exemplo disso é que o zoneamento ecológico-econômico e marinho só existe no Estado de São Paulo”, diz.

A força-tarefa criada no âmbito do mesmo Ministério com a missão de elaborar o Plano de Adaptação às Mudanças Climáticas consolidou o documento em abril, mas isso não é suficiente, na visão de Turra. “Há muito pouca gente pensando a zona costeira. Em gerenciamento, há três pessoas e em questões do mar, seis”, afirma.

Compartilhe