Recifes na foz do Amazonas

Originalmente publicado em: Pesquisa FAPESP. Ed. 239. Janeiro 2016.

Região da desembocadura do rio, entre o Pará e o Amapá, abriga a ocorrência mais ao norte de corais no litoral do Brasil.

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Cinco espécies de corais pétreos (ordem Scleractinia) encontradas perto da foz do Amazonas: ocorrência na zona mesofótica, onde incide pouca luz. Foto: Alf Cordeiro.

Distante 86 quilômetros da costa do Maranhão, o parcel de Manuel Luís é o maior banco de corais da América do Sul. Seus recifes, com profundidade entre 15 e 45 metros, abrangem uma área de cerca de 69 quilômetros quadrados. A seus paredões submersos são atribuídos os naufrágios de duas centenas de embarcações desde o século XVI até o XX. Protegido pelo status de parque estadual marinho, o parcel é tradicionalmente descrito como a ocorrência de recifes de corais mais setentrional do litoral brasileiro. Agora essa condição é colocada em dúvida por um novo estudo. Segundo artigo científico publicado em outubro no periódico Bulletin of Marine Science por biólogos do Grupo de Pesquisa em Antozoários (GPA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), existem ambientes recifais um pouco mais profundos e quase desconhecidos, cerca de 550 quilômetros (km) ao norte do parcel, em frente à foz do rio Amazonas, entre os estados do Pará e do Amapá. A maior parte dos corais foi encontrada a profundidades que variam entre 30 e 125 m, ao longo da chamada zona mesofótica, onde incide pouca luz.

Depois de rever a literatura científica sobre o tema e vasculhar os registros de coletas marinhas feitas desde os anos 1950 perto do delta do maior rio do mundo, a equipe concluiu que existem ao menos 38 espécies de corais nessa região. A maioria das espécies identificadas (27) é da subclasse dos octocorais ou corais moles, que apresentam oito tentáculos em seus pólipos e incluem as gorgônias, corais azuis e penas-do-mar. Nove espécies são de corais pétreos, também denominados corais verdadeiros (ordem Scleractinia), uma de coral negro (ordem Antipatharia) e uma de hidrocoral ou coral de fogo (ordem Anthoathecata). As amostras analisadas no estudo pertencem às coleções do Museu de Oceanografia Dr. Petrônio Alves Coelho, da UFPE, e do Smithsonian National Museum of Natural History (EUA). Também foram identificados exemplares coletados na região durante as atividades do projeto Piatam Oceano, tocado por universidades brasileiras com patrocínio da Petrobras, que fez coletas de animais marinhos na década passada entre as costas do Pará e Amapá.

corais amazonia 02A descoberta de colônias desses invertebrados marinhos ao largo do delta do Amazonas, entre 40 e 250 km mar adentro em relação à costa, foi uma surpresa. “Os rios são considerados obstáculos naturais à ocorrência de corais e o Amazonas sempre foi visto como uma barreira importante para a formação de recifes”, afirma o biólogo Ralf Cordeiro, primeiro autor do estudo. O Amazonas carrega uma enorme quantidade de sedimentos para o oceano e turva as águas marinhas. Esse efeito do rio sobre o oceano é captado em imagens de satélite, como a usada nesta reportagem para ilustrar os lugares de ocorrência dos corais na região Norte. Com menos luz incidindo em suas águas superficiais, os arredores do delta são um local inóspito para a proliferação de corais. O volume de água doce despejado em sua foz também altera consideravelmente a salinidade do Atlântico. Sozinho, o Amazonas responde por 18% de toda a água doce que corre para os mares do planeta. Tudo isso dificulta a proliferação de corais, seres vivos que ocorrem em ambientes marinhos com parâmetros rígidos, como salinidade entre 3,45% e 3,64% e temperatura entre 24,5 e 28,3 graus Celsius (ºC). Estudos anteriores feitos na região estimam que a influência da água despejada pela boca do Amazonas no Atlântico pode ser sentida a uma distância de até 500 km das costas do Pará e do Amapá.

 

Oásis de vida

As adversidades das condições locais provavelmente explicam a ausência de corais nas águas mais superficiais da foz do Amazonas e a concentração desses invertebrados marinhos em trechos mais profundos do Atlântico. De acordo com esse cenário, a existência de recifes em águas rasas se torna quase impossível naquela região, mas, à medida que a profundidade aumenta, surgem brechas para o surgimento de oásis de vida. “Depois de uns 25 m de profundidade, a influência dos sedimentos e da água doce do rio é menor e as condições se tornam melhores para a existência de corais”, explica Cordeiro.

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Nidalia occidentalis: uma das 27 espécies de octocorais encontradas nos arredores da foz do Amazonas. Foto: Alf Cordeiro.

A existência de corais de profundidade nas proximidades dos litorais do Pará e Amapá indica um padrão de ocorrência diferente do que se verifica nos pontos da costa brasileira onde há recifes. Em Abrolhos, no sul da Bahia, e mesmo no parcel de Manuel Luís, essas formações costumam se situar em águas rasas, de até 30 m de profundidade. Alguns corais identificados na boca oceânica do Amazonas são endêmicos do Brasil, capazes de construir recifes verdadeiros, como o coral-cérebro Mussismilia hispida. Isso é um indicativo de que pode haver ecossistemas recifais de tamanho razoável a média profundidade naquela região, embora por ora não haja informações detalhadas sobre sua extensão.

Os pesquisadores da UFPE acreditam que boa parte dos corais no delta do Amazonas é originária de populações ancestrais do Caribe. “Pode ter existido – ou talvez ainda exista – um corredor de corais na zona mesofótica entre o Caribe e o Atlântico”, diz o biólogo Carlos Daniel Pérez, coordenador do GPA e professor do Centro Acadêmico de Vitória da UFPE, coautor do estudo. Alguns trabalhos sugerem que os corais da América Central e os do Norte do Brasil estiveram unidos num passado remoto. Um dado que corrobora essa hipótese é que mais da metade das espécies de corais da ordem Scleractinia encontradas na costa brasileira também está presente no Caribe. A maior parte dos estudos estima que a fauna marinha das duas regiões divergiu evolutivamente entre 5 e 16 milhões de anos atrás, justamente quando o Amazonas passou a desaguar no Atlântico.

 

Estudos com vídeo e fotos

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Parcel de Manuel Luís: corais em águas mais rasas do que nas costas do Pará e do Amapá. Foto: Ministério do Meio Ambiente.

Para Alberto Lindner, biólogo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o artigo de Cordeiro e de seus colegas da UFPE aumenta consideravelmente o conhecimento sobre a presença de corais no entorno do delta do rio Amazonas e desbanca o parcel de Manuel Luís como o limite mais ao norte da distribuição geográfica desses invertebrados marinhos ao longo da costa do país. “Apesar de estudos anteriores indicarem a existência de esponjas, peixes recifais e de algumas espécies de corais na foz do Amazonas, o novo estudo surpreende ao contabilizar registros inéditos de mais de 20 espécies de corais nessa região”, afirma Lindner, coordenador do projeto Biodiversidade Marinha do Estado de Santa Catarina e estudioso dos corais.

Por ser uma região de difícil acesso para a realização de coletas no Atlântico, a foz do Amazonas apresenta registros incompletos da ocorrência de seres marinhos. As águas turvas e revoltas são um desafio para os estudos oceanográficos e dificultam atividades de mergulho autônomo. Os pesquisadores acreditam que o trabalho de caracterização da área terá de ser feito com o auxílio de veículos submarinos operados remotamente, visto que há corais a profundidades acima dos 100 m. “Em razão do aquecimento global, da acidificação dos oceanos e de outras ameaças aos corais, como a pesca de arrasto, recomendamos a realização de levantamentos fotográficos e de vídeo para conhecermos melhor essas comunidades marinhas altamente negligenciadas”, diz Pérez.

 

Conexão Antártida-Abrolhos

Processos climáticos induzidos pelo buraco de ozônio podem estar associados a

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Coleta em recife de Abrolhos. Foto: Heitor Evangelista.

menor crescimento de corais no sul da Bahia

O buraco na camada do gás ozônio (O3) sobre a Antártida, que surge durante a primavera no hemisfério Sul, pode ter um importante papel em uma alteração em curso no Atlântico tropical cerca de 8 mil km ao norte do continente gelado: a diminuição na taxa de crescimento dos recifes de corais em Abrolhos, no sul da Bahia, desde os anos 1980. Um estudo de pesquisadores brasileiros, franceses e taiwaneses publicado em 17 de agosto no periódico Biogeosciences Discussions sugere que há uma forte correlação entre os dois fenômenos, apesar da enorme distância que os separa.

De acordo com o trabalho, o buraco de ozônio intensificou os ventos do oeste, que, mais fortes, passaram a levar mais águas superficiais quentes para o trecho de mar próximo ao litoral do Nordeste. Dados de modelos climáticos indicam que a temperatura média anual das águas no sul da Bahia subiu 1ºC, de 24,8°C para 25,8ºC, entre 1948 e 2006. Sensíveis a mínimas variações na temperatura do oceano, os corais de Abrolhos, situados cerca de 40 km da costa, começaram a crescer menos nas últimas quatro décadas. “Testamos vários parâmetros que poderiam estar por trás do aquecimento das águas em Abrolhos, como o próprio aquecimento do clima global e o fenômeno El Niño”, afirma o geofísico Heitor Evangelista, do Laboratório de Radiologia e Mudanças Globais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), principal autor do estudo. “O que melhor explica essa mudança é a existência do buraco de ozônio, que modifica os ventos do oeste ao redor da Antártida e, consequentemente, a estrutura dos ventos no Atlântico Sul.”

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Representação do buraco de ozônio (em azul) na Antártida: Atlântico mais quente afeta crescimento de corais. Fonte: Nasa/Goddard Space Flight Center.

Para determinar a evolução dos recifes de Abrolhos, os cientistas coletaram três amostras de duas espécies de corais-cérebro da região, a Siderastrea stellata e a Favia leptophylla. As amostras eram de colônias sadias e foram obtidas na forma de testemunhos, pequenas colunas verticais de 28 ou 50 centímetros de altura que podem ser usadas para inferir a taxa de crescimento dos corais ao longo do tempo. As duas espécies mostraram uma queda em seu ritmo de crescimento, sobretudo a partir de meados da década de 1970 e início dos anos 1980. Embora o buraco de ozônio sobre a Antártida tenha sido identificado em 1985, seus efeitos sobre o clima antecedem a sua descoberta.

Os pesquisadores envolvidos no trabalho acreditam ter identificado uma teleconexão climática – um fenômeno em um canto do planeta capaz de causar repercussões em outra parte do globo – com implicações sobre o ambiente marinho no sul da Bahia. “A influência da Antártida na circulação atmosférica já é conhecida”, diz a professora Ilana Wainer, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP). “Novo é esse impacto no Atlântico tropical, especificamente com relação ao crescimento de corais.” Especialista em modelos climáticos sobre a interação do oceano com a atmosfera na região antártica, Ilana é coautora do paper.

 

Artigos científicos
CORDEIRO, R.T.S. et al. Mesophotic coral ecosystems occur offshore and north of the Amazon River. Bulletin of Marine Science. v. 91, n. 4, p. 491-510. out. 2015.
EVANGELISTA, H. et al. Southwestern Tropical Atlantic coral growth response to atmospheric circulation changes induced by ozone depletion in Antarctica. Biogeosciences Discussions. 15 ago. 2015.

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