V. Adaptações fisiológicas da fauna marinha ao ambiente antártico e sua relação com o aquecimento global.

          O ambiente antártico nem sempre pareceu tão hostil como nos dias atuais. Há mais de 100 milhões de anos, a Antártida fazia parte de um supercontinente denominado Gondwana que, por sua vez, era localizado em regiões onde predominavam os climas tropical e temperado, com fauna e flora abundantes.

Figura 1: Paisagem Antártica a 100 milhões de anos atrás (Autoria: Robert Nicholls / paleocreations.com)

          Como consequência da tectônica de placas, o Gondwana foi subdividindo-se ao longo do tempo. Por volta de 25 milhões de anos atrás, a Antártida se isolou, tomando a posição e a forma como é conhecida hoje. Neste processo, as temperaturas foram gradualmente declinando e a geografia do Oceano Austral foi profundamente alterada. Assim, de um ambiente temperado com temperatura flutuante ao longo do ano, o ambiente antártico evoluiu para um ambiente polar, onde a temperatura da água do mar é praticamente constante, muitas vezes atingindo temperaturas abaixo de zero. Grande parte dos organismos se extinguiu nesse processo, e os que sobreviveram foram os que puderam adaptar-se às novas condições ambientais e encontrar alternativas metabólicas e fisiológicas para garantir sua sobrevivência nesta nova condição. 

          A baixa temperatura é um dos fatores que determina o tipo de vida encontrada na Antártida. Animais ectotérmicos, ou seja, aqueles que são incapazes de regular a temperatura corpórea, como os peixes e invertebrados, são capazes de lidar principalmente com a diminuição de seu metabolismo e alteração de outros processos, tornando-se especialistas em uma margem estreita e quase constante de temperatura. Em geral, a diminuição da temperatura tende a causar um declínio do metabolismo destes indivíduos retardando os processos fisiológicos, enzimáticos e de produção de energia nas células, implicando em crescimento e reprodução mais lentos. O frio implica ainda na redução de eficiência do sistema nervoso e da musculatura, na possibilidade de congelamento do sangue e dos fluidos corpóreos, entre outras dificuldades para as quais os animais precisaram se adaptar.

          Em contrapartida, o oxigênio utilizado na respiração dos animais dissolve-se com maior facilidade em águas frias, ocorrendo, portanto, em maiores concentrações. Sendo assim, a captação deste gás pelos indivíduos é relativamente mais fácil e requer menor esforço fisiológico, o que é uma economia energética importante para os organismos habitantes de altas latitudes.

Figura 2: O ice fish é um exemplo de adaptação quanto à saturação de oxigênio na água gelada. O sangue deste peixe não apresenta pigmentação, sendo o transporte gasoso desempenhado inteiramente pelo plasma sanguíneo (Autoria Julian Gutt / Alfred Wegener Institute fonte: http://scienceblogs.com).

          A variação na intensidade e disponibilidade de luz é outro fator determinante uma vez que neste continente há a alternância sazonal entre meses com luz e meses de quase escuridão. Na ausência da luz, não há crescimento satisfatório de algas, diatomáceas e outras formas de fitoplâncton, que são a base da teia alimentar. Assim, a baixa produção primária dos meses de frio faz com que os organismos que dela dependem sejam forçados a encontrar mecanismos de sobrevivência à escassez de alimento, adotando estratégias de redução dos gastos energéticos individuais nesta época do ano. A alteração sazonal dos hábitos alimentares, a maturidade reprodutiva tardia, a fecundidade limitada e longevidade elevada também são estratégias adaptativas comuns aos organismos antárticos.

          Em suma, as taxas metabólicas reduzidas em baixas temperaturas e a necessidade de suprir as demandas energéticas em períodos de escassez de alimento durante os meses mais frios e escuros colocou os organismos antárticos em cheque, forçando-os a buscar adaptações fisiológicas e ecológicas específicas para o ambiente antártico. Desta maneira, o que seria destes organismos altamente adaptados a um ambiente extremo, mas de temperatura pouco variável, quando acrescentamos o aquecimento global a toda esta equação? Estudos desenvolvidos em laboratório por pesquisadores de várias partes do mundo, inclusive do Brasil, têm demonstrado que o aquecimento da água, mesmo que em décimos de graus Celsius, já é suficiente para alterar a fisiologia da fauna antártica ectotérmica. O aumento da temperatura resulta em diminuição da oferta de oxigênio na água, enquanto que o metabolismo, e, portanto, a necessidade de energia e de oxigênio, aumenta exponencialmente. Para suprir essas necessidades energéticas deve haver aumento da produção de energia pelo organismo. Entretanto, os animais antárticos estão adaptados a baixas taxas metabólicas em ambiente com abundância de oxigênio dissolvido na água. Dessa forma as estruturas desses indivíduos não possuem a eficiência e/ou a flexibilidade fisiológica exigida na situação de um ambiente com temperaturas variáveis. Mudanças na faixa de temperatura tolerável por eles podem levar ao colapso dos sistemas internos, fazendo com o que os organismos entrem em estado de hipóxia (insuficiência de oxigênio nos tecidos) e então, morram.

          Se a fauna antártica conseguiu evoluir de um ambiente temperado no passado e adaptou-se com sucesso a uma condição polar, porque não poderia ocorrer o inverso, ou seja, adaptar-se desta vez a partir de um ambiente mais frio? Infelizmente as perspectivas não são positivas neste caso. Mesmo que as mudanças climáticas ocorram em amplitudes térmicas semelhantes, a velocidade das mudanças atuais parece ser muito maior do que aquela encontrada no passado, refletindo em um tempo hábil muito menor para o processo de evolução. Mesmo sofrendo extinções em massa e perda considerável de diversidade biológica, a fauna em tempos remotos teve milhões de anos para adaptar-se às mudanças na Antártida, ao invés de centenas de anos conforme tem sido previsto para a fauna atual. Esta mudança acelerada, associada a fatores como fecundidade limitada e elevada longevidade dos organismos antárticos, sugerem que o tempo evolutivo não será suficiente para que as espécies atuais acompanhem essas mudanças em um futuro próximo.

Figura 3: Representação gráfica e simplificada a rede trófica no ecossistema antártico (<http://www.coolantarctica.com.>).

          Embora toda esta discussão aplique-se majoritariamente aos organismos ectotérmicos, como peixes e invertebrados, é importante lembrar que o restante da teia alimentar antártica depende destes animais para sobreviver. Isto significa que diversos outros animais, que fazem parte deste grande ecossistema, como as baleias, focas, pinguins e outras aves como os albatrozes, também estão suscetíveis às mais sutis mudanças climáticas na região. Assim, mesmo que estes animais endotérmicos (capazes de controlar a própria temperatura corporal, como os mamíferos e aves) sejam pouco influenciados por estas pequenas variações térmicas ambientais, a falta de alimento e alterações do habitat poderão constituir uma séria ameaça à sua conservação.

          A vida marinha antártica parece estar condicionada ao ambiente na forma como ele é hoje. Qualquer alteração nesse equilíbrio pode colocar em risco todo o ecossistema. Por sua vez, essas alterações podem causar efeitos ainda pouco previsíveis no clima e na vida do planeta como um todo. Teorias sobre os impactos causados ao ecossistema antártico devido ao rápido aumento na temperatura global foram fundamentadas com pesquisas sérias e complexas a respeito deste assunto, mas não representam uma verdade absoluta. Fato é que a mitigação das consequências do aquecimento global no continente antártico, e no resto do mundo, pode ser iniciada através de ações que ajudam a retardar aumento da temperatura global, como a redução da queima de combustíveis fósseis e a adoção de ideias sustentáveis.

Figura 4: Primeira usina capaz de produzir eletricidade a partir de ondas na América Latina está localizada no Ceará. Exemplo de novos mecanismos de geração de eletricidade com baixo impacto ambiental, fruto de pesquisas brasileiras (<http://gireufscar.blogspot.com.br>).

Leitura sugerida:

Clarke, A.; Johnston, N. M.; Murphy, E. J. & Rogers, A. D. 2007. Introduction. Antarctic ecology from genes to ecosystems: the impact of climate change and the importance of scale. Phil. Trans. R. Soc., London, Series B, 362: 5-9.

Peck, L. S. 2002. Ecophysiology of Antarctic marine ectotherms: limits to life. Polar Biol., 25: 31-40.

Peck, L. S. 2005. Prospects for survival in the Southern Ocean: vulnerability of benthic species to temperature change. Antarct. Sci., 17: 497-507.

Peck, L. S.; Convey, P. & Barnes, D. K. A. 2006. Environmental constraints on life histories in Antarctic ecosystems: tempos, timings and predictability. Biol. Rev., 81: 75-109.

Pörtner, H. O. 2006. Climate-dependent evolution of Antarctic ectotherms: an integrative analysis. Deep-Sea Res. II, 53: 1071-1104.

Autores:

Aline Kirschbaum

Caio Cipro

Fernanda Imperatrice

Franco Villela

Gabriel Monteiro

Hileia dos Santos Barroso

Ralph Vanstreels

Coordenação: Prof. Dr Vicente Gomes

Fevereiro/2013 (republicado em agosto 2019)

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