Um passeio submerso pelo Atlântico Sul

gliderJornal da USP Online, 26 de maio de 2014.

 

TECNOLOGIA

Cruzar uma bacia oceânica com um aparelho autônomo não tripulado pode ser considerado um desafio tecnológico comparável ao lançamento dos primeiros foguetes ao espaço. Essa é a missão de uma equipe internacional integrada por pesquisadores do Instituto Oceanográfico, que, a partir de Ubatuba, no litoral paulista, lançará um glider submersível em sua rota de volta à África do Sul.

 

SYLVIA MIGUEL

Na ciência, nem sempre o resultado perfeito e esperado é o que realmente importa. Ao contrário, a ciência pode estar mais ligada ao árduo processo pelo qual os pesquisadores passam até chegar a uma nova descoberta. Os percalços vividos até o momento com o RU29 têm sido um aprendizado para toda a equipe. Inclusive o desembaraço alfandegário que irá liberar o aparelho para sua necessária manutenção em solo brasileiro, a fim de que tome a rota até a África do Sul, completando assim a primeira volta completa de um glider submersível por uma bacia oceânica.

O RU29 (RU, de Rutgers University) saiu da Cidade do Cabo no dia 11 de janeiro de 2013 e chegou a Ubatuba, no litoral paulista, no dia 18 de maio passado, após uma parada para manutenção nas Ilhas Ascensão, no meio do Oceano Atlântico.

Se completado o trajeto de volta, o que deverá ocorrer no início de 2015, será uma espécie de recorde para esse tipo de aparelho, conta o professor Marcelo Dottori, do Instituto Oceanográfico da USP, responsável pelas operações de recolhimento e lançamento do veículo em águas brasileiras.

O trajeto, em si, já configura um belo desafio científico e tecnológico. “Há problemas como o crescimento de organismos no equipamento, o que pode mudar suas características de navegação e dificultar a missão, durabilidade do material e peças. E podem ocorrer ataques de animais marinhos, como tubarões e focas. A questão energética parece estar bem resolvida, mas ainda há uma certa preocupação com isso também”, afirma Dottori.

Com a liberação da alfândega brasileira após os trâmites para uma “importação temporária”, o veículo submarino deverá passar por uma manutenção que envolve troca de algumas peças e pintura. Tudo sob a supervisão cuidadosa do professor Scott Glenn, da Rutgers University, que está na base da USP em Ubatuba desde o dia 15 de maio para essa operação, com seu técnico de laboratório, Clinton Haldeman.

As aplicações científicas do glider submersível podem ser variadas. Segundo Dottori, esses aparelhos podem medir diversas propriedades nos oceanos de maneira autônoma e com custos muito reduzidos quando comparados aos meios tradicionais. É possível, por exemplo, medir temperatura, salinidade, concentração de clorofila e oxigênio dissolvido na coluna d’água.

Pode também ter uso militar e, de fato, nos Estados Unidos, já existem grupos da Marinha trabalhando com esse equipamento, afirma Dottori. Como o veículo não possui motor, não pode ser detectado por submarinos. Portanto, navegar sem ser notado é uma de suas vantagens.

No momento, os gliders submersíveis não são ainda capazes de “descobrir” petróleo e isso provavelmente não será possível num futuro próximo, diz o professor. “Entretanto, esse tipo de aparelho poderá ser capaz de detectar petróleo que esteja na água por circunstância de um derramamento. Assim, poderá ser útil também para monitorar a qualidade da água”, afirma Dottori.

Origem – O conceito de um glider submersível alimentado por um trocador de calor foi apresentado por Henry Stommel em artigo publicado em 1989 na revista Oceanography. A ideia partiu de Douglas C. Webb, que, com o apoio de Stommel e outros cientistas, concebeu a classe dos slocum gliders – uma homenagem a Joshua Slocum, o primeiro homem a velejar sozinho ao redor do mundo.

Esses veículos autônomos submarinos (AUV, sigla em inglês para autonomous underwater vehicle), compostos por redes móveis, carregam uma diversidade de sensores. Podem ser programados para se mover em locais e profundidades específicos, realizando medições durante semanas. Enviam os dados para uma base em solo e podem fazer o download de novas instruções em intervalos regulares.

Tudo isso é possível a um pequeno custo relativo, inclusive por utilizar um mínimo de pessoal e infraestrutura. A economia substancial de custos em relação aos navios de superfície convencionais permitirá constituir pequenas frotas dedicadas ao estudo da dinâmica das águas e solos submarinos.

A primeira tentativa de cruzar uma bacia oceânica – nesse caso, a bacia do Atlântico Norte – aconteceu em 2009, quando estudantes e cientistas da Rutgers University lançaram na costa de New Jersey o pequeno robô RU17. A missão então batizada de Scarlet Knight passou pelo primeiro grande teste quando o equipamento se perdeu na costa dos Açores. A meta de chegar até a Espanha afinal chegou a termo com o RU27. Mesmo com a perda, o aprendizado ficou, conforme comentários da equipe numa página da Rutgers University: “Aprendemos uma quantidade imensa de informações sobre muitos aspectos diferentes da missão. Informações que vão desde a dinâmica de voo de gliders e características de impedimentos físicos e biológicos até a importância extrema das relações internacionais colaborativas”. Os primeiros gliders começaram a ser comercializados em 2001 pela companhia Webb-Research.

O RU29 será lançado a partir do Alpha Delfini, um dos barcos recentemente adquiridos pelo Instituto Oceanográfico com apoio da Fapesp.

 

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