O adeus ao Prof. Besnard

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A primeira viagem: em 1967, de Bergen, Noruega, rumo a Santos
© ACERVO PESSOAL YARA NOVELLI

Originalmente publicado em: Pesquisa FAPESP. Ed. 241. Março 2016.

Em pé, ao lado de um vaso com rosas e gérberas entre guindastes brancos com largas manchas de ferrugem, no convés principal do navio oceanográfico Prof. W. Besnard, Mario Katsuragawa, um professor de 64 anos do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), disse com voz firme e pausada, no final da manhã de 16 de fevereiro: “A ciência oceanográfica brasileira deve muito a este navio”.

Katsuragawa e outros 11 pesquisadores estavam ali para se despedir do navio que fizera parte da formação científica de cada um deles e foi um marco na pesquisa oceanográfica no Brasil. Katsuragawa fez 33 viagens no Prof. Besnard. Segundo ele, a mais dramática, de que não participou, foi uma de 1988, quando o eixo do motor quebrou na passagem de Drake, um longo trecho de mar revolto e ventos fortes na entrada da Antártida, e o navio teve de ser rebocado até o Chile. Lourival Pereira de Souza, técnico do laboratório de oceanografia química, participou de “mais de 50” expedições, disse ele, incluindo três para a Antártida. Na plateia estava também Luiz Bruner de Miranda, aos 78 anos, professor do IO-USP que acompanhou a construção do navio no estaleiro de Bergen, na Noruega, integrou a equipe da primeira viagem, de dois meses, em 1967, rumo ao porto de Santos, e foi pesquisador-chefe de muitas expedições do Besnard.

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Em construção: o lançamento do casco, em 1966
© ACERVO IO-USP / REPRODUÇÃO FRANCISCO LUIZ VICENTINI NETO

Ancorado ao lado estava um de seus sucessores: o Alpha Delphini, o primeiro barco oceanográfico inteiramente construído no Brasil (ver Pesquisa FAPESP no 208). Com 27 metros (m) de comprimento e espaço para 12 pesquisadores e seis tripulantes, está em operação desde 2013, quando foi incorporado pelo IO para aumentar a capacidade de pesquisa em oceanografia no estado de São Paulo. Em 2012 o instituto da USP, com apoio da FAPESP, comprou o navio Alpha Crucis (ver Pesquisa FAPESP no 195), que assumiu boa parte das funções do Besnard. Com 64 m de comprimento e capacidade para 19 tripulantes e 21 pesquisadores, o Alpha Crucis está em reforma em um estaleiro no Ceará e deve retomar suas atividades nos próximos meses.

Com 49,3 m de comprimento, podendo transportar 22 tripulantes e 15 pesquisadores, o Besnard foi construído por encomenda do governo paulista, com verbas estaduais e federais, como resultado de intensas negociações iniciadas no final da década de 1950 por Wladimir Besnard, pesquisador russo radicado no Brasil, à frente do então chamado Instituto Paulista de Oceanografia (IPO), e continuadas por Martha Vannucci, primeira diretora do IO, constituído a partir do IPO.

Com mais de 150 viagens, o navio passou por uma ampla reforma de 1994 a 1997. Em 1998 teve de parar outra vez, com problemas no motor, e voltou ao mar em 2000 (ver Pesquisa FAPESP no 59). Em 2008, sofreu um incêndio grave e ficou sem condições operacionais de pesquisa, já que os custos para reformá-lo eram muito altos. Em 2012, a compra do Alpha Crucis, que estava sendo planejada havia muitos anos, trouxe o dilema sobre o que fazer com o histórico navio, continuamente castigado pelo tempo: em fevereiro de 2016, quase toda a estrutura de madeira estava tomada por cupins e o motor inoperante. Nenhuma prefeitura expressou interesse em transformar o navio em museu, nem a possibilidade de doação ao Uruguai avançou. A empresa que administra o porto de Santos solicitou a retirada do navio e a universidade resolveu abrir licitação para sua remoção por alguma empresa interessada, que dará ao navio o fim que melhor lhe aprouver, encerrando um longo percurso de produção de conhecimento sobre a costa brasileira.

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A inauguração, em 1967, do navio cujo nome homenageia…
© ACERVO IO-USP 
…Wladimir Besnard
© ACERVO IO-USP 

Na primeira expedição a equipe do navio identificou uma montanha submarina de 3.500 m de altura e o topo a 194 m de profundidade, perto de uma das menores ilhas do arquipélago de Cabo Verde. O navio explorou principalmente a costa sudeste brasileira, de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, até o Cabo de Santa Marta, no Rio Grande do Sul. Uma de suas primeiras missões foi uma série de 12 viagens para investigar o potencial pesqueiro da costa do Rio Grande do Sul, em 1968. Seguiram-se mais de 260 viagens, com finalidades didáticas – para a formação de estudantes e pesquisadores – ou científicas, com cerca de 10 mil pontos de coleta de informações sobre correntes, temperaturas, salinidades ou organismos marinhos. O Besnard também teve uma função geopolítica, ao participar do Programa Antártico Brasileiro de 1982 a 1988, ao lado de navios da Marinha como o Barão de Teffé.

Agora as equipes do IO se mobilizam para conservar o máximo possível de seus instrumentos e documentos. Engenheiro elétrico de formação e participante de quatro viagens à Antártida com o Besnard, Luiz Nonnato mostra o timão com os comandos de rotação do motor e da hélice e uma coluna de latão e madeira que abriga a bússola, chamada de bitácula, retirados do navio em 2015, depois que seu destino foi decidido, e mantidos no Laboratório de Instrumentação Oceanográfica do IO.

“Bronze puro”, diz o engenheiro mecânico Francisco Vicentini, que fez 51 viagens no Besnard, das quais 21 como pesquisador-chefe, ao puxar com cuidado um dos dois sinos do navio de uma das prateleiras do laboratório. Por ali estão também, em variados estados de conservação, algumas janelas – ou vigias –, luzes de navegação de emergência a querosene, a placa original do fabricante norueguês e um sextante. Uma das âncoras e instrumentos de maior porte estão à mostra na entrada e no museu do instituto.

A bibliotecária Eloisa de Sousa Maia apresenta o acervo de fotos, filmes e documentos mantidos no museu do IO. Em uma das salas refrigeradas da coleção biológica do instituto estão os 68 diários de bordo, que estão sendo catalogados pela equipe do museu em busca de informações sobre pesquisas, instrumentos, projetos e pesquisadores de cada viagem. “Os diários são muito úteis”, disse Monica Petti, bióloga do instituto e curadora da coleção, com seis viagens no Besnard. Segundo ela, a coleção deve guardar cerca de 50 mil amostras de organismos marinhos coletadas em viagens do Besnard, muitas ainda à espera de análises detalhadas.

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