Por que mapear o fundo do mar?

Fonte: Jornal da USP

Por Tássia Biazon, pesquisadora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano, e Michel Michaelovitch de Mahiques, professor do Instituto Oceanográfico da USP

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No dia 24 de julho de 1969, um módulo da astronave Apollo 11 pousou na superfície da Lua, distante de nós 384 mil km. Apenas em 1977, ou seja, oito anos depois, a bordo do submersível americano Alvin, foi possível identificar a existência de uma diversificada vida marinha associada a fontes termais no fundo do Oceano Pacífico, a centenas de metros abaixo da superfície oceânica. Esse é apenas um dos vários exemplos de como o conhecimento sobre alguns corpos celestes se encontra mais avançado do que o conhecimento de ambientes marinhos, principalmente o fundo do mar.

 

Esse cenário, em parte, é reflexo de a Oceanografia ser uma ciência relativamente jovem. Esta surgiu na segunda metade do século XIX, a partir da viagem de circum-navegação do navio Challenger, pertencente ao então Império Britânico. O desenvolvimento dessa recente ciência se deu, principalmente, a partir da segunda metade do século XX, acompanhando o desenvolvimento tecnológico da humanidade. No Brasil, apenas em 1946 foi fundada a primeira instituição oceanográfica do País, que veio a se tornar o atual Instituto Oceanográfico da USP.

 

O conhecimento do relevo submarino segue essa mesma tendência, visto que para estudá-lo muitos desafios precisam ser superados, como as altas pressões. Uma das maiores dificuldades para o mapeamento detalhado do assoalho oceânico é a impossibilidade de utilizar instrumentos ópticos para a medição de distâncias no oceano a partir de satélites ou embarcações. A luz é praticamente extinta a partir dos 200 metros de profundidade, um valor significativamente menor do que a profundidade média do oceano (3.700 metros). Assim, utilizam-se instrumentos baseados na propagação do som para “ver” o fundo marinho.

 

As primeiras determinações seguras de profundidade do oceano, utilizando um equipamento denominado ecossonda, capaz de detectar as ondas sonoras na água, somente vieram a ocorrer a partir dos trabalhos do navio alemão Meteor, entre 1925 e 1927, em cruzeiros que atravessaram o Oceano Atlântico em diferentes latitudes. Antes das ecossondas, a determinação das profundidades era feita com um fio de prumo, instrumento rudimentar e limitado.

 

Não obstante, foi com dados de fio de prumo que o americano Matthew Fontaine Maury (1806-1873), o “Desbravador dos Mares”, elaborou os primeiros mapas do relevo do fundo do Atlântico Norte, visando a instalação de cabos submarinos, ligando a América do Norte à Europa. Cabe citar aqui que os americanos Bruce Heezen (1924-1977) e Marie Tharp (1920-2006) criaram o primeiro mapa do fundo oceânico global em 1977, mas até hoje não há um mapa detalhado do fundo oceânico. Atualmente, milhares de cabos submarinos, portando fibra óptica, encontram-se instalados no fundo do mar e são responsáveis por parte significativa do tráfego de internet global. Literalmente, a internet navega! A TeleGeography, uma empresa de telecomunicações, disponibiliza em tempo real a posição dos cabos submarinos no planeta como um todo. Mas, para além de propagar e otimizar o tão usado e essencial sinal da internet, por que é importante mapear os fundos marinhos? As justificativas são diversas.

 

Se não fossem os estudos sobre o fundo do mar, as obras de engenharia costeira e oceânica seriam impossíveis. Por exemplo, a extração de petróleo e gás, que acontece em terra (onshore) ou no mar (offshore), necessita de instalação de plataformas, que são estruturas muito complexas, além de oleodutos e gasodutos, instalados no fundo do mar. Outro exemplo é a construção de pontes marítimas como a inaugurada na China em 2018, que conecta Hong Kong, Macau e Zhuhai, com 55 km de extensão e uma profundidade máxima de 44,5 metros. Ou mesmo túneis como o Fehmarnbelt, que começou a ser construído em 2020 e irá descer até 40 metros abaixo do Mar Báltico, a fim de conectar a Dinamarca e a Alemanha. Todas essas obras dependem de uma correta avaliação do relevo submarino.

 

Outro ponto importante, que demanda o estudo detalhado do fundo do oceano, relaciona-se à geopolítica. Países banhados pelo mar possuem territórios marinhos sob sua jurisdição que lhes permitem explorá-los, a saber: o Mar Territorial, que vai do litoral até 12 milhas náuticas ou 22 km; a Zona Econômica Exclusiva, a partir do mar territorial até 200 milhas ou 370 km; e a Plataforma Continental Jurídica, cuja definição é dependente da morfologia e das características do substrato, podendo se estender para além do limite da Zona Econômica Exclusiva. A Plataforma Continental Jurídica é a área oceânica sobre a qual um país tem o direito de explorar o fundo marinho, incluindo a subsuperfície. A partir das Conferências sobre o Direito do Mar, o mapeamento do assoalho submarino passou a ser mandatório e algumas áreas da Plataforma Continental Jurídica têm apresentado enorme potencial para pesquisa e exploração de minerais estratégicos, como cobalto, ouro, prata e platina.

 

Além dos limites da jurisdição nacional dos países, o oceano – desde a superfície até o subsolo – é fiscalizado pela Autoridade dos Fundos Marinhos.

 

Se, mesmo nos continentes, a diversidade da vida ainda é desconhecida, no fundo do mar, onde o acesso é restrito, o conhecimento sobre a biodiversidade é ainda menor. Muitos organismos marinhos vivem em ambientes de difícil acesso, sendo adaptados à alta pressão, elevada salinidade e falta de luz ou alimento. A descoberta constante de novos organismos no fundo do mar e o estudo de seu potencial biotecnológico abrem um enorme leque de possibilidades para pesquisas, inclusive sobre doenças que afligem a sociedade, como o câncer – já há medicamentos, como a trabectedina, produzidos por meio de organismos marinhos. Então, conhecer o fundo do mar também é importante para a biodiversidade e a biotecnologia.

 

Alguns países estabeleceram, já há algumas décadas, programas de mapeamento detalhado do fundo marinho, como Itália, Israel, Japão e Irlanda. No Brasil, programas públicos de mapeamento do fundo marinho são praticamente inexistentes ou se encontram interrompidos. Isso é devido às grandes dimensões da área oceânica, mas principalmente em função da falta de apoio ao desenvolvimento tecnológico e científico. Não obstante, as poucas pesquisas realizadas em ambiente acadêmico revelaram resultados impressionantes, como o Grande Sistema de Recifes Amazônicos, uma estrutura recifal com mais de 900 km de extensão, localizada na plataforma e talude continentais em frente à desembocadura do Rio Amazonas, com uma biodiversidade impressionante, com alta riqueza de espécies como peixes, esponjas, algas calcárias e corais. No Sudeste do Brasil, trabalhos de mapeamento utilizando técnicas avançadas de sondagem revelaram microambientes com um enorme potencial de descoberta de novas espécies.

 

O Estado de São Paulo não pode se furtar de estabelecer um extenso programa de mapeamento do fundo marinho. Além de abrigar três Áreas de Proteção Ambiental Marinhas (APA Marinha Litoral Norte, APA Marinha Litoral Centro e APA Marinha Litoral Sul), a margem continental paulista dispõe de plataformas de exploração de óleo e gás. Além disso, há uma pressão crescente para a exploração de areia, visando à recuperação de faixas de praia que apresentam forte erosão, cujos exemplos mais dramáticos no Estado ocorrem nos municípios de Ilha Comprida, Santos e Caraguatatuba.

 

Apenas um programa de mapeamento organizado do fundo marinho, envolvendo a universidade e o poder público, permitirá uma boa gestão do ambiente, sobretudo aquele invisível aos olhos humanos, sempre submerso mas já superimpactado. O projeto Seabed 2030, uma parceria entre a Nippon Foundation, a Organização Hidrográfica Internacional e a Comissão Oceanográfica Intergovernamental, prevê o mapeamento em detalhe do fundo oceânico até o final da Década do Oceano e as ações de pesquisas brasileiras podem contribuir de forma relevante com essa importante meta mundial.

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