Da teoria à prática: trabalho de campo no litoral

Por Tássia Biazon

O curso de difusão "Noções de Oceanografia", oferecido pelo IOUSP, levou estudantes e profissionais de diversas áreas para uma viagem de campo ao litoral sul do estado de São Paulo. O curso é ministrado por docentes do instituto, contemplando assuntos das quatro grandes áreas da Oceanografia (biologia, química, física e geologia), como por exemplo, a poluição no mar, as correntes oceânicas, o fundo marinho, entre outros.

“Esse trabalho de difusão surgiu da constatação de vários professores do instituto de que havia a necessidade de maior divulgação da Oceanografia ao público em geral, especialmente alunos do ensino médio. Ele foi ministrado pela primeira vez no primeiro semestre de 1993”, afirma o coordenador do curso e professor do instituto, Joseph Harari.

Desde então, o curso é acontece semestralmente (maio a julho e setembro a novembro). “Em 24 anos ocorreram 48 edições em São Paulo. Desde 2014, passamos a oferecê-lo em Santos, completando, em 2016, um total de três edições. Tivemos também a oportunidade de ministrá-lo, de forma esporádica, na Base de Pesquisa em Cananéia”. O professor cita a gratificação em palestrar para auditórios com mais de 200 pessoas interessadas. “Esse trabalho de difusão permite aos alunos chegar à universidade conscientes do que é esse campo da ciência, as técnicas utilizadas, as áreas de trabalho etc.”, relata.

O coordenador ainda menciona a importante participação do Museu Oceanográfico da USP nesse trabalho de difusão, organizando desde visitas ao museu à realização de excursões ecológicas, além da integração do curso com uma disciplina da pós-graduação do IOUSP – nomeada “Preparação Pedagógica em Oceanografia”.

Para o chefe do Museu Oceanográfico, Sérgio Teixeira de Castro, esse trabalho de difusão atende a diversas demandas: pessoas que desejam entender como funciona essa ciência multidisciplinar que é a Oceanografia, aqueles que têm a intensão de prestar um vestibular na área, os profissionais de áreas afins que buscam se aprofundar ou se especializar nas Ciências do Mar, ou mesmo aqueles que sempre tiveram um fascínio pelo tema.

A aluna Juliana Brito Silveira, técnica ambiental pela Escola Técnica Estadual (Etec) Osasco II, estava entre os cerca de 200 alunos que realizou o curso teórico. “Ele é ideal para quem pretende seguir a área ambiental, como eu, oferecendo uma visão da profissão. Foi uma experiência muito enriquecedora, por sempre ter tido interesse na Oceanografia, mas nunca ter encontrado um meio que oferecesse sua difusão”, relata.

O curso teórico tem duração de mais de dois meses, é ministrado aos domingos e não tem nenhum custo ao aluno. Contudo, a fim de obter uma experiência prática, há a oportunidade da viagem de campo a uma das bases de pesquisa do IOUSP, localizada em Cananéia, litoral sul do estado de São Paulo, quase na divisa com o Paraná. São poucas vagas e a viagem é paga, mas a recompensa final é grande.

“A grande importância da viagem de campo está na experiência única e especial que o indivíduo tem em vivenciar o que ele aprendeu na teoria, e se sentir, mesmo que por alguns instantes, um profissional da área da Oceanografia, tendo acesso a toda infraestrutura de uma base de apoio ao ensino e pesquisa do IOUSP (embarcações, instrumentos, laboratórios etc.)”, diz Sérgio.

Joseph Harari cita que o curso é para os mais diversos tipos de interessados, como, por exemplo, na especialização e atualização de professores do 2º grau, na preparação de profissionais envolvidos em assuntos de mar (como guias de turismo e mergulhadores) e vários outros profissionais (como engenheiros, sanitaristas etc.). “Nosso maior desafio é manter um curso atualizado e de alto nível, que satisfaça o interesse de uma grande parte da população, que se propõe a utilizar parte do seu descanso semanal para alcançar conhecimento”, relata.

Sérgio diz que o projeto “Excursão Ecológica - A escola vai ao mar”, adaptado ao curso como viagem de campo desde o seu início, completará 25 anos em 2017. “Realizamos mais de 40 viagens como essa, atendendo cerca de mil alunos, além de toda equipe e estagiários que se beneficiaram das práticas para evoluírem em suas carreiras profissionais. Sem contar como a satisfação da equipe do museu em coordenar cada uma dessas viagens”, afirma o biólogo, que cita um desafio: reduzir os custos da viagem para atender uma demanda cada vez maior.

Ele destaca que as conquistas do trabalho são muitas. “Além de presenciar os brilhos nos olhares dos participantes, demonstrando o prazer e a satisfação com os resultados, há a sensação do dever cumprido e do objetivo da cultura e extensão à comunidade atingido de forma ampla e irrestrita. São diversos os exemplos de ex-alunos do curso e participantes da viagem de campo que hoje são profissionais da área, inclusive com mestrados, doutorados e até mesmo pós-doutorado. Sem contar os diversos sonhos realizados daqueles que nunca tiveram oportunidade de vivenciar essa experiência única e singular”, expõe.

Três dias de muito trabalho e aprendizado

A última viagem de campo à Cananéia, realizada no início de novembro de 2016, contou com 24 alunos, dois estagiários do museu, dois funcionários e três monitores, além da equipe responsável pelas embarcações e também pela base, que cuidava da preparação do café da manhã, almoço e jantar.

Considerada o primeiro povoado do Brasil, Cananéia está localizada na maior reserva de Mata Atlântica brasileira, possuindo uma rica biodiversidade. A região é um dos maiores berçários de vida marinha do planeta, com vários rios, lagoas e baías – uma grande variedade de ecossistemas que atrai muitos pesquisadores, professores e estudantes.

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Base de Pesquisa “Dr. João de Paiva Carvalho” do IOUSP, em Cananéia.

A Base de Pesquisa “Dr. João de Paiva Carvalho” possui infraestrutura para atividades acadêmicas e de pesquisa, contando com alojamentos, refeitório, salas de aula, laboratórios, oficinas, estação maregráfica, estação meteorológica, meios flutuantes como a embarcação “Albacora” e outros barcos de apoio.

Ao chegarem à base, os alunos tiveram uma apresentação sobre a região de Cananéia. Depois, houve a introdução da história da cidade e das características do manguezal. Terminada a aula, todos puderam conhecer o centro histórico.

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Sérgio Teixeira de Castro, chefe do Museu Oceanográfico.

Os trabalhos práticos começavam cedinho. Os alunos foram divididos em três grupos: estação oceanográfica, ecossistema manguezal e laboratório da base. Durante os três dias, os grupos revezaram nas três atividades que, embora diferentes, se complementavam.

As embarcações, antes de chegarem a seus destinos, encontravam diversos botos-cinzas pelas águas da Baía dos Golfinhos. “Nunca tinha entrado em um barco. Foi uma experiência marcante. Também não tinha noção do quanto os oceanos interferem no clima”, diz a aluna Maria Fernanda Garrubo Bentubo, que recentemente terminou a graduação tecnológica em Hidráulica e Saneamento Ambiental pela Faculdade de Tecnologia (Fatec) de São Paulo.

Estimulada pelos pais, que fizeram o curso completo, a estudante de engenharia química na USP, em Lorena, Taciana Freire de Oliveira, só conseguiu fazer o curso prático e disse que a experiência lhe deu um olhar mais crítico sobre o mar. “As duas atividades que envolviam embarcação foram marcantes. Nunca tinha feito nada igual”, afirma a estudante que retornou recentemente de um intercâmbio na Alemanha, como bolsista do Ciências sem Fronteiras, e tem refletido sobre sua formação.

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Embarcação Albacora navegando com os alunos.

Os alunos fizeram várias atividades na estação oceanográfica. Manipularam o disco de secchi – mede a transparência da água; a garrafa de nansen – coleta água para medir a salinidade, temperatura, oxigênio dissolvido; o têrmometro de reversão – mede a temperatura; o correntômetro – calcula a direção e a intensidade das correntes marinhas; a garrafa de deriva – traça correntes oceânicas; o termosalinômetro – mede tempratura e a condutividade da água do mar; a rede de plâncton – filtra os organismos planctônicos da água; a rede de arrasto – coleta organismos que vivem no fundo do água e o pegador de fundo – retém o sedimento, obtendo dados como o número de indivíduos por área. Os alunos foram também à cabine de comando do barco e conheceram equipamentos como a bússola de visada e a ecossonda, para determinar a profundidade e observar o relevo submarino.

O estagiário do Museu Oceanográfico, Felipe Pinto da Silva, está no segundo ano de Gestão Ambiental na USP, e compôs a equipe da viagem. Foi muito interessante a vivência da estação oceanográfica! Como monitor do museu, sempre mostro os equipamentos aos visitantes, como a garrafa de nansen, e nunca tinha utilizado o equipamento na prática”.

“Eu sempre gostei do mar. Vivo na praia, mergulhando e surfando. Fazer o curso me deu uma maior visão sobre a Oceanografia. A estação oceanográfica foi o que mais me interessou. Na teoria estava difícil, mas a prática foi fundamental para melhor compreender. A oportunidade é interessante e difícil de encontrar”, disse o dentista, Luciano Rogério Dias de Moura.

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Alunos visualizando organismos planctônicos em lupas.

Na atividade laboratorial, os alunos tiveram a oportunidade de ver diversos organismos coletados na região. Em um tanque fora do laboratório havia estrela-do-mar, bolacha-do-mar, siri, camarão, peixe linguado etc. Nos áquarios do laboratório, eles também puderam ver: ermitão, anêmona, camarão e os peixes linguado, bagre, morcego, michole, palambeta baiacu liso e baiacu de espinho.

A estudante do segundo ano de biologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Sorocaba, Gabriela Borda de Araujo, foi à viagem com uma bagagem especial: estava acompanhada dos pais, Solange Rodrigues Borba de Araujo e Gilberto Donizeti Pires de Araujo. “Hoje eu entendo um pouco mais sobre a complexidade do ambiente marinho”, avalia a estudante.

Os pais de Gabriela sempre acompanham a filha em seus cursos, para incentivá-la a estudar, e os dois acabam aprendendo muito também. Para Gilberto, o mais interessante foi a diversidade do grupo. “Biólogo, advogado e engenheiro buscavam, como eu, conhecimento para o seu dia a dia”. Já Solange recorda da aula em laboratório, onde olharam os organismos planctônicos na lupa. “Não me esquecerei do que o monitor Fábio disse: ‘depois de entrarmos na água e mergulharmos, se passássemos um pente fino, uma grande quantidade de organismos vivos ficariam no pente’. A gente só vê muita água e não imagina que tem tanta vida”, diz surpresa.

O biólogo Fábio Hasue, doutorando no IOUSP, foi um dos monitores do curso prático. Para ele, a viagem permitiu aos alunos entrar em contato direto com o ambiente que lhes foi mostrado durante as aulas teóricas. “Além de auxiliar no melhor entendimento da teoria, permite criar uma empatia pelo ambiente marinho e vivenciar os conhecimentos científicos na prática”, expõe. “Uma atividade como essa influencia muito na preservação ambiental”, diz ele, que também sai com uma bagagem maior. “Nessas viagens sempre aprendo como podemos influenciar as pessoas sobre a importância da preservação do meio ambiente”.

A também doutoranda do IOUSP e monitora da viagem, a oceanógrafa Luciana Yokoyama Xavier, relata o que mais a impressionou. “Havia um deslumbramento e a animação dos participantes com momentos/objetos/situações, que para mim, já eram rotineiras. Deu para lembrar como foi a primeira vez que entrei no barco e olhar a experiência por outro ângulo, uma vez que as atividades que praticamos na viagem foram similares às que eu mesma vivenciei quando iniciei o curso de bacharelado em Oceanografia”, recorda.

Motivado por colegas de trabalho, o tecnólogo em logística Everton Moretão Oliveira é a quinta pessoa da empresa onde trabalha que realiza o curso. “Antes, olhava o mar e achava que só os peixes grandes eram a vida marinha. Mas é muito mais do que a gente vê a olho nu. Ela é muito diversa”, diz. “A viagem toda foi interessante, mas o que mais me marcou foi o manguezal. Se estivesse a passeio, eu nunca entraria lá”, afirma. Na aula no manguezal – ecossistema costeiro de transição entre os ambientes terrestre e marinho, sujeito ao regime das marés –, os alunos entraram no ambiente e viram algumas espécies adaptadas para viverem no local, como por exemplo, o mangue-branco.

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Ecossistema manguezal em Cananéia.

Entrar no manguezal também foi a parte mais interessante da viagem para Kátia Mayumi Maeshiro, formada em relações internacionais. “Quando teria uma próxima oportunidade? Se não fosse para entrar com profissionais, eu nunca entraria sozinha no manguezal”, diz ela, que trabalha em uma companhia de transporte marítimo de cargas em São Paulo e gosta de tudo relacionado ao mar. “Realizar o curso aumentou ainda mais meu interesse sobre o assunto. Vou incentivar outras pessoas, independentemente da área, já que qualquer um pode fazê-lo. É um curso que conscientiza as pessoas, e por isso, é essencial que todo cidadão tenha acesso a ele”, avalia.

Formada em biologia na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Simone de Melo dos Santos é professora do ensino fundamental e médio em São Paulo. “Além de gostar muito de estudar o mar, estava buscando cursos complementares para melhorar meu currículo. Nunca tinha feito nada parecido. Mesmo em São Luís (MA), que tem a graduação em Oceanografia, onde fiz algumas disciplinas, nunca ofereceram a oportunidade para outras pessoas terem essa percepção do ambiente marinho”, compara a professora.

“Normalmente, ao pensarmos na vida marinha, logo vem em mente os mamíferos, como baleias, golfinhos e tartarugas. Mas os plânctons, organismos tão pequeninos, têm uma importância e tanto, pois eles são a base da cadeia alimentar”, manifesta. “O que mais me tocou na viagem foi a harmonia do grupo. Mesmo sendo de áreas tão diferentes, os alunos conseguiram estabelecer uma interação muito bacana”, acrescenta.

A advogada Christiane Nora Gregolin fez o curso teórico e prático. “Como realizo o mergulho subaquático, tinha ideia de muita coisa, como a diversidade da vida marinha, o respeito com o meio ambiente e a noção de como as coisas estão interligadas. Mas realizar o curso expandiu minha percepção. A viagem me acrescentou um olhar mais técnico, por exemplo, sobre os experimentos de pesquisas oceanográficas”, relata.

“Todos os dias e todas as atividades foram muito legais. Além de um olhar ecológico, o curso oferece um olhar científico”, diz a advogada, acrescentando que seria interessante que ele chegasse às pessoas que não são sensibilizadas sobre o assunto. “Por exemplo, os tomadores de decisão e formadores de opinião. Por mais que eles saibam que é importante a preservação da natureza, eles desconhecem muitas coisas”.

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Turma da última viagem de campo, em novembro de 2016.

As aulas teóricas aos domingos recebiam alunos de diversas regiões da cidade de São Paulo e outras cidades, como Sorocaba, Campinas e Guaratinguetá. Um deles é Paulo Cesar Ruzene, professor de geografia do ensino médio em Guaratinguetá, a 200 km do IOUSP. “Foi um prazer e não um sacrifício”, ressalta, revelando que não faltou em nenhuma aula.

O professor disse que gostou muito da experiência, até mesmo da aula em laboratório, que a princípio não tinha muito interesse. “Ter aprendido a teoria com profissionais empenhados,  realizado a prática colocando o pé na lama e puxado a corda do arrasto. Tudo foi se complementando”. E acrescenta: o ânimo do grupo foi contagiante. “Eu gostaria de propagar esse sentimento em meus alunos”, conta o professor que dá aula no EJA. Ele também destaca algo que o marcou: “Percebi que a região onde moro não é tão preservada. Fiquei triste em saber o quanto a ação antrópica é impactante”.

A estudante de engenharia ambiental Paloma de Paula Campos, lembra que as pessoas só se preocupam com o esgoto até ele sair das suas casas. “Elas não pensam que boa parte do esgoto vai parar no oceano. Que muitos efluentes são descartados em vias fluviais, contendo, por exemplo, hormônios, que impactam os ecossistemas. Boa parte dos anticoncepcionais que as mulheres tomam vai parar em vias fluviais. E onde todos os rios desaguam? Nos oceanos”, expressa a estudante, refletindo sobre o quanto o ambiente marinho está sendo impactado pelas ações humanas.

“As atividades na embarcação, que demonstraram alguns dos trabalhos do oceanógrafo, como coletar a água do fundo do mar. No ecossistema manguezal, ver a formação do sambaqui! Não tinha ideia do que era isso! Em laboratório, a dissecação dos peixes, identificando seus órgãos, como o estômago e a bexiga natatória. Hoje eu tenho uma maior percepção dos oceanos e das suas funções. E fiquei com vontade de aprender ainda mais”, finaliza Maria Fernanda.

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